Raduan Nassar lançou este seu livro, o segundo de sua minguada produção, em 1978. O Brasil ainda vivia sob a ditadura militar. Contudo, não há quase nada nele, no plano ostensivo, sobre as condições político-sociais que o país vivia naqueles anos. O tema desta densa e quase alucinada novela é o embate que se trava entre um casal de amantes, suscitado por uma razão banal. Sob esse plano simples, porém, jaz uma condensação quase infinita de significados, que, enfeixados por uma prosa extremamente apurada, tornam essa obra uma das ficções mais complexas e intrigantes surgidas na segunda metade do século 20.
A história está dividida em sete partes: A Chegada, Na Cama, O Levantar, O Banho, O Café da Manhã, O Esporro, A Chegada. Conforme se vê, a última seção retoma a primeira, como que fechando um ciclo, mas sob perspectiva diferente. Enquanto no início o personagem masculino chega à sua chácara e encontra a namorada à sua espera, no final é a mulher quem surge na casa do amante, e topa com ele dormindo. Entre esses dois momentos, eles se amam e, pela manhã, lançam-se à briga feroz. O motivo parece despropositado. O homem irrita-se com as formigas que estão destruindo sua cerca viva e passa a atacar o formigueiro. A namorada ironiza a operação e ele se volta contra ela. A guerra verbal ocorre num crescendo de agressividade.
A crítica Leyla Perrone-Moisés vê na surpreendente hostilidade contida na discussão um reflexo do clima adverso que havia na sociedade brasileira, sem qualquer dos estereótipos da ficção “engajada”. Nassar procuraria mostrar como os indivíduos introjetam o discurso do poder e, quando provocados, podem usar as armas da linguagem contra a insatisfação gerada por esse mesmo discurso. Neste trecho, por exemplo:
“[…] e eu poderia atrevido largar às soltas o raciocínio, espremendo até o bagaço o grão do seu sarcasmo, mas eu não falei nada, não disse um isto, tranquei minha palavra, ela não teve o bastante, só o suficiente, eu pensava, por isso já estava lubrificando a língua viperina entorpecida a noite inteira no aconchego dos meus pés e etcétera, eu só sei que continuei de cabeça baixa mas avançando, as coisas aqui dentro se triturando […]”.
Numa outra vertente de interpretação, as formigas e a cerca viva podem ser vistas como símbolos de algo mais amplo, como a fragilidade do ser humano na busca por proteger-se (a cerca viva no fundo não traz proteção); anseio que não é refratário ao poder subterrâneo dos instintos, ao mesmo tempo irracional e implacável, caótico e ordenado, representado pelas formigas.
Diferentemente de Lavoura Arcaica, em que o registro pende para o erudito, o profético e o arcaico, a linguagem desta novela é moderna e nervosa, cheia de gírias. Ainda assim, mantém os longos períodos e a recriação de uma oralidade expressiva, que se aproxima do poético, do primeiro romance.
Após publicar sua terceira obra, o livro de contos Menina a Caminho (1997), Nassar refugiou-se em sua fazenda e, desde então, tem reiterado seu desinteresse pela literatura. Um Copo de Cólera ganhou versão cinematográfica em 1999.
Título: Um Copo de Cólera
Autor: Raduan Nassar
Outros livros do autor
Esse texto faz parte do especial “100 Livros Essenciais da Literatura Mundial”, publicado em 2007 pela revista Bravo!
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