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Literatura: Naturalismo

Relatos quase científcos

Os autores do Naturalismo (1881-1922) se colocam como observadores imparciais diante de seu objeto de estudo – os personagens

Considerada por muitos especialistas a radicalização do Rea   lismo, a estética naturalista se estabelece na Europa e no Brasil na segunda metade do século XIX, impulsionada por uma série de avanços científicos, principalmente nos campos da biologia e da sociologia.

Além de observarem a realidade, os autores naturalistas procuram explicar os acontecimentos com base em teorias científicas. O romance se converte numa espécie de laboratório, no qual temas considerados polêmicos pela sociedade do período são expostos sem idealização nem contornos atenuantes. A influência do meio sobre o indivíduo (determinismo) e a evolução dos seres vivos (darwinismo) são algumas das ideias incorporadas por escritores para explicar o comportamento dos personagens  (e, desse modo, interpretar a própria realidade). No Brasil, Aluísio Azevedo (1857-1913) retratou o modo de vida das classes populares e também o comportamento animalesco que pode estar por trás das aparências de civilidade.

Darwinismo – O QUE ISSO TEM A VER COM A BIOLOGIA?

O inglês Charles Darwin desenvolveu a teoria da evolução das espécies pela seleção natural. Segundo a teoria, os indivíduos nascem com pequenas diferenças, e algumas delas facilitam sua sobrevivência. Elas são transmitidas aos descendentes, e o meio ambiente funcionaria como filtro para selecionar os organismos mais adaptados. Para saber mais, veja o GUIA DO ESTUDANTE BIOLOGIA.

Literatura: Naturalismo

Uma bela[1] noite, porém, o Miranda, que era homem de sangue esperto e orçava então pelos seus trinta e cinco anos[2], sentiu-se em insuportável estado de lubricidade. Era tarde já e não havia em casa alguma criada que lhe pudesse valer[3]. Lembrou-se da mulher, mas repeliu logo esta ideia com escrupulosa repugnância. Continuava a odiá-la[4]. Entretanto este mesmo fato de obrigação em que ele se colocou de não servir-se dela, a responsabilidade de desprezá-la, como que ainda mais lhe assanhava o desejo da carne, fazendo da esposa infiel um fruto proibido[5]. Afinal, coisa singular, posto que moralmente nada diminuísse a sua repugnância pela perjura, foi ter ao quarto dela.

(…) Ah! ela contava como certo que o esposo, desde que não teve coragem de separar-se de casa, havia, mais cedo ou mais tarde, de procurá-la de novo. Conhecia-lhe o temperamento, forte para desejar e fraco para resistir ao desejo.

Consumado o delito, o honrado negociante sentiu-se tolhido de vergonha e arrependimento. Não teve ânimo de dar palavra, e retirou-se tristonho e murcho para o seu quarto de desquitado.

Oh! como lhe doía agora o que acabava de pra- ticar na cegueira da sua sensualidade.
(…)
No dia seguinte, os dois viram-se e evitaram-se em silêncio, como se nada de extraordinário hou- vera entre eles acontecido na véspera.
(…)
Mas, daí a um mês, o pobre homem, acometido de um novo acesso de luxúria, voltou ao quarto da mulher.
(…)
Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão violenta no prazer. Estranhou-a. Afigurou-se-lhe estar nos braços de uma amante apaixonada: descobriu nela o capitoso encanto com que nos embebedam as cortesãs amestradas na ciência do gozo venéreo. Descobriu-lhe no cheiro da pele e no cheiro dos cabelos perfumes que nunca lhe sentira; notou-lhe outro hálito[6], outro som nos gemidos e nos suspiros. E gozou-a, gozou-a loucamente, com delírio[7], com verdadeira satisfação de animal no cio[8].

E ela também, ela também gozou, estimulada por aquela circunstância picante do ressentimento que os desunia; gozou a desonestidade daquele ato que a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se toda, rangendo os dentes, grunhindo[8], debaixo daquele seu inimigo odiado, achando-o também agora, como homem, melhor que nunca, sufocando-o nos seus braços nus, metendo-lhe pela boca a língua úmida e em brasa[9].

L&PM editores, 1998.

Publicado em 1890, O Cortiço traça o perfil da sociedade brasileira no fim do século XIX. Pela janela, um narrador assiste à formação de um cortiço ao lado de seu sobrado. O autor registra a ascensão de uma classe social que não medirá esforços para enriquecer e atingir o poder político. Portugueses, negros e mulatos experimentam a pobreza e a desigualdade social em leituras animalizadas do ser humano.

[1] DERIVAÇÃO IMPRÓPRIA: O adjetivo “bela” é empregado como um pronome indefinido  (“uma noite qualquer”).  A escolha da palavra “bela” cria uma anteposição à noção de grotesco presente na relação do casal, na qual não há nenhuma indicação de amor e de belo.

[2] VOCABULÁRIO: A escolha da forma verbal “orçava” revela o caráter ambicioso de Miranda, que resumia tudo a dinheiro e a benefício próprio. A seleção vocabular é um procedimento essencial para a construção de um texto.

[3] COISIFICAÇÃO: Com o objetivo de criticar os valores civilizatórios burgueses e a descaracterização da “humanidade” do homem, alguns personagens se tornam coisas ou objetos.  O texto deixa transparecer o papel da criadagem nesse processo de coisificação do ser humano.

[4] APARÊNCIA VERSUS ESSÊNCIA: Após verificar a traição de Estela, Miranda toma providências. No entanto, tais medidas só se estendem à vida privada. Na vida pública, mantinham a aparência de casal unido. Interesses financeiros e reputação social estão em jogo. Lobo Neves, marido de Virgília, toma uma atitude semelhante à de Miranda; no entanto, quando percebe que o adultério da mulher pode prejudicar sua vida pública, afasta os amantes

[5] SEXUALIDADE: Há uma visão não espiritualizada dos afetos humanos. O retrato da sexualidade aflorada, muitas vezes por meio de hipérboles e adjetivos, é tipicamente naturalista.

[6] NATURALISMO: A descrição física ligada ao corpo é muito explorada pelos naturalistas para representar os aspectos instintivos e naturais do ser humano. As descrições apelam para o grotesco e o animalesco. O homem, que passa a ser objeto de investigação científica, é descrito com precisão e detalhamento

[7] DINAMISMO: A repetição da forma verbal “gozou” reforça o caráter de dinamismo conferido à narrativa e insere o leitor ao momento de delírio vivido pelos personagens.

[8] ANIMALIZAÇÃO: O desejo ligado ao cio é frequente na literatura naturalista. Os personagens sofrem um processo de animalização conhecido por zoomorfismo.

[9] DESEJO: Estela é movida pelo desejo físico (evidenciado pelas descrições naturalistas), ao contrário de Virgília, de Memórias Póstumas de Brás Cubas (motivada pelo desejo de alcançar status, aspecto assinalado com a ironia machadiana voltada para as relações sociais), e de Luisa, de O Primo Basílio (que deseja viver uma aventura romântica).

Literatura: Naturalismo

O Cortiço foi adaptado para os quadrinhos pela Editora Ática, por Rodrigo Rosa e Ivan Jaf, que fizeram intensa pesquisa para reconstituir a paisagem carioca com seus cortiços no século XIX. Essa versão traz uma nova linguagem, sem deixar de lado o humor e a acidez da crítica social presentes na obra original.

Literatura: Naturalismo

(…)
Em 2003, Frans de Waal publicou um experimento clássico. Colocou dois macacos em jaulas vizinhas e os treinou para que devolvessem pedras colocadas no interior da gaiola. Para cada pedra entregue eles recebiam uma fatia de pepino (…) Mas algo espantoso acontecia quando um dos macacos era recompensado com uma uva em vez de uma fatia de pepino. (…) o outro, que podia observar o pagamento superior recebido pelo vizinho (a uva) se revoltava. Parava de entregar a pedra ou atirava o pepino no cientista.
(…)
Recentemente, um novo tipo de comportamento foi detectado, mas agora somente em chimpanzés e crianças humanas. É a chamada aversão secundária à injustiça. Nesses experimentos, foi demonstrado que em certas situações o chimpanzé ao qual é oferecido o pagamento mais valioso (uva) se recusa a receber o pagamento, a não ser que seu par receba o mesmo pagamento ou um semelhante. (…) Nada mal para um macaco, algo muito difícil de observar entre seres humanos adultos, mas quase automático entre crianças de até 4 anos.
(…)
Talvez devêssemos investigar melhor nosso lado animal. Será que encontraremos outras características hereditárias, hoje inibidas pela educação, capazes de nos tornar animais melhores?

O Estado de S. Paulo, 18/10/2014

Este artigo, redigido por um biólogo, relata pesquisas sobre o senso de justiça entre os macacos. O texto realiza uma característica inversa à executada pelos autores naturalistas. Estes usavam a zoomorfização, ou seja, por trás da aparente civilidade, mostravam o comportamento animalesco e os aspectos instintivos inerentes às ações dos personagens. Já os estudos apontam para o caminho contrário. Humanizam os animais e revelam que muitas das características geralmente atribuídas a humanos, como a capacidade de se incomodar com injustiças ou de solidarizar-se com o próximo, não são exclusividade da nossa espécie.

Literatura: Naturalismo
Estudo
Literatura: Naturalismo
Relatos quase científcos Os autores do Naturalismo (1881-1922) se colocam como observadores imparciais diante de seu objeto de estudo – os personagens Considerada por muitos especialistas a radicalização do Rea   lismo, a estética naturalista se estabelece na Europa e no Brasil na segunda metade do século XIX, impulsionada por uma série de avanços científicos, […]

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