Interpretação de texto: Metáfora e outras figuras de linguagem
As figuras de linguagem estão relacionadas às diversas formas de empregar expressões em sentido simbólico
De autoria da jornalista Marina Novaes, o artigo abaixo foi publicado em setembro de 2015 no site do jornal El País Brasil. A jornalista aproveita o momento político conturbado e polarizado para analisar de forma bem-humorada e crítica as relações sociais em tempos de novidades cibernéticas e de dicotomias políticas.
O texto aborda como as relações amorosas são afetadas por questões ideológicas e partidárias e brinca com o humor e com o jogo de oposição e de atração que ocorre em situações como essas.
Para justificar sua tese de que sempre tentamos modificar a pessoa amada de acordo com nossos interesses e convicções (“Quem nunca tentou mudar a pessoa amada que atire o primeiro título de eleitor”), a autora explora de modo intenso o recurso das figuras de linguagem – os diferentes modos de empregar uma expressão para além do seu sentido denotativo (dicionarizado) de modo a provocar efeitos diversos.
A metáfora, a antítese, o paradoxo, a personificação, entre outras figuras, têm a capacidade de produzir imagens que apontam para uma linguagem simbólica, indireta, surpreendente ou simplesmente enfática. Ao se utilizar desses recursos, o autor enriquece seu texto e seus argumentos.
Superado o luto pelo fim de um relacionamento amoroso que durou dez anos (cujos motivos do término não cabe aqui abordar, pois intimidade com o leitor tem limite), decidi testar o Tinder, encorajada por amigos preocupados com o grau de seriedade da minha relação com o Netfix[1]. Primeiro choque: em poucos minutos nesse menu humano[2] me deparo com vários colegas de profissão e, sem jeito, quero sumir ( já era o meu anonimato!). Em tempos de passaralhos e crise na mídia, parece ter mais jornalistas no Tinder que em muitas redações por aí. Segunda surpresa: as pessoas agora se importam com política – ao ponto de isso virar nota de corte na hora da paquera[3]. Como se já não estivesse suficientemente difícil…
No começo, achei que quem tinha mudado era eu[4]. Afinal, há uma década (jovem), importava mais se o pretendente usava crocs (fuééém! Reprovado!) do que saber em quem ele tinha votado nas últimas eleições[5]. Mas não, não foi só eu quem revi as minhas prioridades. O Brasil mudou[6]. E agora não basta apenas sair bem na foto: é preciso sair bem na foto E não ser coxinha – ou não ser petralha[7] (a inclinação política fica a gosto do freguês).
Qual não foi o meu espanto ao ver ditados da Clarice Lispector – como o simpático “amar os outros é a única salvação individual que conheço”[8] – dividindo o espaço da descrição pessoal com frases bem menos receptivas como “você que votou na Dilma: FOOOORA!!!” ou “reaças, nem gastem seu tempo comigo”. Definitivamente não vivemos uma época boa para os opostos se atraírem. Ou melhor, os opostos podem até se atrair, mas considerando as demonstrações de agressividade da nossa era de polarização, eles correm o risco de protagonizar uma versão politizada do Romeu & Julieta (e a gente sabe como isso acabou, não?). A torcer por um final mais feliz.
De olho nesse nicho, crescem os rumores de que empreendedores do amor[9] estariam desenvolvendo o PoliTinder: um app para unir pretendentes com as mesmas inclinações ideológico-partidárias e, assim, quem sabe diminuir as chances de uma desilusão amorosa mais adiante ( já que a desilusão política ninguém pode garantir que não vá ocorrer).
Os mais românticos dirão que tudo não passa de um exagero. Convenhamos, no calor da paixão, esses detalhes tão pequenos de nós dois pouco importam[10]. Apaixonados, nos iludimos na esperança de convencer o outro a trocar de lado até a próxima votação. “Mas, amor, esse Governo adotou a mesma política econômica que a gente adotaria. Até nomearam o Joaquim Levy!”, falaria o nosso Romeu da oposição. “Até a Kátia Abreu virou ministra” – ele não desiste. “Nem me venha com esse golpe pra cima de mim! Ou vai dormir no sofá!”, rebateria nossa Julieta governista, enfática.[11]
Quem nunca tentou mudar a pessoa amada que atire o primeiro título de eleitor.[12]
[1] PERSONIFICAÇÃO: A passagem sugere que a autora mantém “relação séria” com o Netflix, um dos maiores serviços de streaming de vídeos do mundo, como se ele fosse um ser humano. Dessa forma atribui a um serviço características humanas.
[2] PARADOXO E IRONIA: No paradoxo ocorrem duas ideias opostas relativas a um mesmo referente. Ao chamar um aplicativo de “menu humano”, a autora junta as noções de cibernético e humano. Há também evidentemente ironia nessa denominação.
[3] METÁFORA: A autora afirma que as preferências políticas vão se tornar critério de seleção na hora da paquera. Ela cria a imagem da “nota de corte” empregada em exames vestibulares como exemplo de critério de seleção.
[4] HIPÉRBATO: Hipérbato ou inversão se caracteriza pela ordem indireta dos elementos na frase. Na sequência direta seria “No começo, achei que era eu quem tinha mudado.”
[5] HIPÉRBOLE E METONÍMIA: Note que é um exagero estabelecer o uso de um calçado como fator decisivo para uma escolha amorosa – daí a hipérbole. O calçado estabelece uma relação de causa e efeito: quem o usa é uma pessoa de mau gosto – o que caracteriza a metonímia.
[6] METONÍMIA: Brasil é tomado como um todo para representar seus habitantes. Exemplo clássico de metonímia.
[7] ANTÍTESE E METÁFORA: Explora-se a oposição entre simpatizantes da direita e da esquerda metaforizados como “coxinhas” e “petralhas”.
[8]PARADOXO: A frase estabelece relação paradoxal, uma vez que a salvação individual não reside no amor próprio, pelo contrário, depende do amor ao outro.
[9] PARADOXO: Novo paradoxo na relação entre as palavras empreendedor (que remete ao mundo empresarial) e amor (que diz respeito ao universo das emoções e dos sentimentos).
[10] CONOTAÇÃO E INTERTEXTUALIDADE: A palavra “calor” foi empregada em sentido conotativo (figurado) para indicar intensidade. Ela estabelece relação de humor com o trecho da famosa canção de Roberto Carlos (Detalhes).
[11] SEMÂNTICA E HUMOR: As palavras extraídas do jargão político e econômico associadas à história de Romeu e Julieta criam efeito de humor e estabelecem relação imediata com a proposta da autora (relações amorosas afetadas por questões ideológicas).
[12] INTERTEXTUALIDADE E HUMOR: A frase cria um efeito de humor intertextual com o ditado “Quem nunca pecou que atire a primeira pedra”. Pecar é substituído por “tentar mudar a pessoa amada”. E pedra, por título de eleitor.
AS PRINCIPAIS FIGURAS DE LINGUAGEM
Metáfora: consiste na aproximação de objetos pertencentes a universos diferentes, mas que apresentam características comuns. Ex: Amor é fogo que arde sem se ver.
Metonímia: estabelece uma relação entre elementos pertencentes a um mesmo universo, de modo que a parte substitui o todo. Ex: Tenho oito bocas para alimentar.
Ironia: emprego de uma expressão com o objetivo de dizer o contrário. Ex: Como você está linda! (quando, na verdade, está horrível).
Paradoxo: ocorre quando há duas ideias contraditórias relativas a um mesmo referente. Ex: Dormindo acordado, sonhei com você.
Antítese: opõe, numa mesma frase, duas palavras ou ideias de sentidos opostos, mas sem haver contradição. Ex: Estou acordado e todos dormem.
Eufemismo: estabelece expressão mais agradável para suavizar o sentido. Ex: O réu faltou com a verdade no tribunal (mentiu).
Hipérbole: diz respeito aos exageros e à intensificação das ideias. Ex: Ela chorou um mar de lágrimas antes de dormir.
Sinestesia: consiste no cruzamento de alguns dos cinco sentidos. Ex: Seu olhar é tão doce (associação de visão e paladar).
Prosopopeia: é a atribuição de características humanas a seres inanimados ou a animais. Ex: O sussurro da floresta assustou os viajantes.