Em pleno 7 de setembro, Heloísa dos Santos Silva, de 3 anos de idade, passeava de carro com a família em Seropédica, na Baixada Fluminense, no Rio, quando o veículo foi subitamente baleado por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Segundo o pai da menina, não houve uma abordagem prévia – uma viatura da polícia passou a seguir seu automóvel até que, de repente, o carro foi atingido por disparos. Heloísa foi atingida em diferentes partes do corpo e, após uma semana, faleceu no hospital no dia 16 do mesmo mês. Os agentes da PRF tentaram justificar a violenta abordagem e o assassinato da menina afirmando que se tratava de um veículo roubado. O pai de Heloísa disse que havia comprado o automóvel pouco tempo antes do episódio e que não sabia que se tratava de um carro irregular.
A mesma PRF, em 2022, já havia sido destaque nos noticiários nacionais por outras ações gravemente nocivas à sociedade brasileira. Em 30 de outubro, quando do 2º turno das eleições presidenciais, a PRF realizou diversas blitzes em rodovias federais pelo Brasil que resultaram em uma forte interferência nos deslocamentos de eleitores até seus locais de votação. As abordagens se concentraram na região Nordeste, historicamente mais favorável ao candidato de oposição na época, Luiz Inácio Lula da Silva.
Alguns meses antes, no dia 25 de maio, agentes da PRF abordaram Genivaldo de Jesus Santos em Umbaúba (Sergipe), por pilotar uma motocicleta sem capacete. Após ser espancado, algemado e ter suas pernas amarradas, Genivaldo foi jogado no porta-malas da viatura da PRF onde os policiais improvisaram uma “câmara de gás”: um dos policiais arremessou uma bomba de gás lacrimogêneo dentro da viatura. Essa inclassificável ação resultou no imediato assassinato de Genivaldo por asfixia.
Não faltam exemplos de ocasiões em que, sob o pretexto de combater a criminalidade e garantir a segurança da população, agentes policiais tenham agido de modo extremamente violento e contra a própria sociedade. Na infinidade de exemplos que poderiam ser listados, o padrão das vítimas que se impõe é o de pessoas empobrecidas e de pele escura. O relatório Pele alvo: a cor que a polícia apaga (2022), da Rede de Observatórios da Segurança, aponta que, em 2021, pessoas negras representaram 97,9% dos mortos na Bahia, 96,3% em Pernambuco, 92,3% no Ceará, 87,3% no Rio de Janeiro, 75% no Piauí e 68,8% em São Paulo. A população negra, no entanto, forma apenas cerca de 50% da população geral do Brasil – o que indica a forte distorção no perfil das vítimas. O Atlas da Violência 2021 revela ainda que a possibilidade de uma pessoa negra ser assassinada no Brasil é cerca de 2,6 vezes maior que a de uma pessoa não negra.
Mas qual seria o papel das forças de segurança na construção história dessa realidade social?
História das forças de segurança no Brasil
No Brasil Colonial, entre os séculos XVI e XIX, tanto os governantes das capitanias, quanto os grandes proprietários rurais já contavam com legislações que estabeleciam a formação de agrupamentos formados por homens armados para “realizar a manutenção da ordem na sociedade colonial”. Embora variassem localmente, a atuação dessas forças tinhamcomo principal objetivo assegurar as relações de poder escravistas no cotidiano colonial. Em caso de maiores distúrbios (como as revoltas ocorridas ao longo desse período), essas forças frequentemente eram convocadas para garantir o restabelecimento da dita ordem.
A chegada da Família Real no Brasil (1808) fez com que, a partir do Rio de Janeiro, se propagassem novos modelos e divisões nas forças operando na área da segurança pública. Foi nesse momento que surgiram elementos de militarização das tropas, embora a predominância ainda fosse de tropas civis. Durante o Império do Brasil (1822-1889), com a formação de uma crescente estrutura burocrática nacional, funcionando juntamente com as legislações provinciais, ocorreu uma maior profissionalização dessas tropas. Embora houvesse algumas diferenças em relação ao período colonial (por exemplo, a separação entre as funções policiais e judiciárias, assim como a formação de delegacias e subdelegacias para auxiliar a chefatura de polícia), os inquéritos e boletins de ocorrência do século XIX também apontam para a tradicional função desses agrupamentos armados: assegurar que as hierarquizações escravistas na sociedade brasileira não fossem ameaçadas.
A partir da Proclamação da República (1889) e ao longo dos diferentes governos republicanos, manteve-se o controle dos governos estaduais sobre forças policiais. Os sucessivos códigos criminais permanentemente penalizavam populações negras, suas culturas, músicas, religiosidades e sociabilidades, assegurando que também na República as parcelas da sociedade concentradas em regiões periféricas (majoritariamente descendentes de pessoas escravizadas) fossem mantidas como os alvos prioritários das ações policiais.
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Uma das mais significativas transformações nas polícias durante a República ocorreu durante a Ditadura Militar (1964-1985). Através dos Decreto-Lei nº667 e nº1072 (ambos de 1969), a reorganização das forças de segurança no Brasil criou aquilo que é atualmente chamado de Polícia Militar (PM). Basicamente, esses decretos determinavam que os governos estaduais substituíssem as antigas Forças Públicas e Guardas Civis por tropas militares fardadas que realizassem o policiamento ostensivo a fim de assegurar o cumprimento da lei e da ordem.
Da segunda metade do século XX às primeiras décadas do século XXI, a piora na concentração de renda, o agravamento na violência urbana, o crescimento das periferias nas metrópoles e a exclusão econômica e social no Brasil foram dramatizados pelos meios de comunicação hegemônicos no país através de narrativas de criminalização da pobreza e legitimação de ações policiais violentas contra as pessoas empobrecidas em programas policiais vespertinos, onde essas pessoas são permanentemente apresentadas como as responsáveis pelo aumento da criminalidade em diferentes regiões do país. Nesse sentido, década após década, constata-se que o aumento da letalidade das ações policiais sobre pessoas negras e pobres é acompanhado pela intensificação de discursos que legitimem e justifiquem à sociedade brasileira que essa é a forma mais efetiva de pacificar o país e derrotar os criminosos.
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Impunidade e blindagem
A Ponte Jornalismo, uma rede de informações focada em Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos, aponta que, entre 2011 e 2019, o encarceramento de policiais presos por cometerem assassinatos diminuiu ano após ano, embora o número de homicídios cometidos pela PM do estado de São Paulo tenha aumentado no mesmo período. Dos 6.125 casos de pessoas mortas por agentes da PM-SP, de acordo com as estatísticas trimestrais da Secretaria de Segurança Pública (SSP), somente 653 PMs acusados de homicídio foram levados ao presídio Romão Gomes (localizado na zona norte da cidade e que recebe somente policiais militares). Tal comparação indica que para cada 10 mortes executadas oficialmente pela polícia, apenas um PM é preso pelo crime.
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Em conclusões consideravelmente semelhantes, as pesquisas e investigações jornalísticas conduzidas por Cecília Oliveira, diretora do Instituto Fogo Cruzado, também alertam que o Ministério Público do Rio de Janeiro apresentou denúncia de apenas quatro (ou seja, 0,1%) dos 3.441 casos de homicídios cometidos pela polícia que foram registrados entre 2010 e 2015. Especificamente em 2015, três quartos dos mortos eram pessoas negras. Percebe-se, portanto, que uma das dificuldades em interromper as ações policiais violentas contra pessoas negras e periféricas não se limita somente a um gigantesco labirinto de tribunais militares e instâncias jurídicas intransponíveis. Um problema central reside já no fato de que grande parte desses casos sequer recebe atenção do próprio Estado – a não ser que se trate de alguma situação que receba atenção midiática, como o caso da menina Heloísa.
Dessa forma, as dúvida que permanecem são: será que essa forma de atuação das forças policiais no Brasil é diferente daquilo que parte significativa da sociedade espera dessas forças? Afinal, houve algum momento da História do Brasil em que essas tropas atuaram de uma maneira que promovesse resultados sociais efetivamente diferentes daqueles que são notados em trágicos noticiários diariamente? Há interesse genuíno dos grupos que controlam as estruturas de poder no Brasil para que isso mude?
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