Muito se fala sobre a luta dos povos indígenas, sobre os conflitos e violências relacionados e até mesmo sobre o que é “muita terra para pouco índio”. Mas o que é a demarcação das terras indígenas? Como ela ocorre? Por que é importante reconhecer esses territórios? Por que essa luta deve ser de toda a sociedade brasileira? Essas e outras questões serão tratadas a seguir.
O QUE SÃO TERRAS INDÍGENAS?
As terras indígenas são porções do território brasileiro habitadas por povos indígenas. Essas estão diretamente relacionadas à garantia da reprodução física, econômica, social e cultural destes grupos, de acordo com seus costumes, tradições e usos.
O conceito de quais são as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios consta no artigo 231 da Constituição Federal de 1988. Em seu primeiro parágrafo está estipulado que terras indígenas são aquelas
“por eles [os índios] habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.
No que diz respeito às terras indígenas, é importante saber que elas não são propriedade dos povos que nela habitam, mas que constituem patrimônio da União. Tratam-se de bens públicos de uso especial, o que significa que são inalienáveis, indisponíveis e não podem ser utilizadas por outras pessoas que não sejam os próprios índios.
Sendo assim, os indígenas detêm sobre essas terras a posse permanente e o uso exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes, ainda conforme o artigo 231.
POR QUE É IMPORTANTE DEMARCAR AS TERRAS INDÍGENAS?
As terras são o suporte da cultura e do modo de vida das 305 etnias indígenas. Elas são fundamentais para a reprodução física e cultural desses grupos, para a manutenção de seus modos de vida tradicionais, seus saberes e suas expressões culturais, as quais fazem parte do patrimônio cultural brasileiro.
Terra indígena demarcada significa a garantia da diversidade cultural e étnica, assim como a proteção ao patrimônio histórico e cultural brasileiro – o que caracteriza um dever da União e das Unidades Federadas, conforme disposto no Art. 24, inciso VII da Constituição. A demarcação das terras indígenas ainda garante a proteção do meio ambiente e da biodiversidade, o que também é um direito constitucional prescrito pelo art. 225 da Constituição.
DIREITO DOS ÍNDIOS, DEVER DO ESTADO
Ter seus territórios demarcados é um direito que os povos indígenas conquistaram após muitos anos de lutas e resistências. A Constituição expressa os direitos dos povos indígenas tanto em capítulos específicos – no título VIII, “Da Ordem Social”, e no capítulo VIII, “Dos Índios” –, quanto em outros dispositivos ao longo de seu texto.
Alguns desses direitos já existiam no ordenamento jurídico nacional, mas não de forma a garantir os direitos fundamentais dos indígenas. São exemplos desse caso os direitos à diferença, a ser diferente da sociedade nacional hegemônica, de ter seus costumes e suas tradições reconhecidos como legítimos e respeitados pelo Estado Nacional.
Foi somente com a Constituição de 1988 que ocorreram mudanças importantes na política indigenista nacional, permitindo o abandono da chamada “perspectiva assimilacionista”. Essa visão entendia que os índios estavam em meio a um processo de perda de seus costumes e tradições.
Assim, eles estavam fadados a desaparecer ao serem integrados à sociedade nacional. Essa visão entendia os índios como sendo uma categoria transitória, fadada ao desaparecimento, já que eles deveriam perder seus costumes e tradições e ser integrados à sociedade nacional. A expectativa de que tais povos “deixariam de ser índios” está até mesmo prevista no Estatuto do Índio.
Além de abolir essa ideia, a Constituição de 1988 também demonstrou avanço ao considerar que o direito dos povos indígenas às terras constituem direitos originários. Ou seja, reconheceu-se que esse direito é anterior à criação do próprio Estado, pois os índios foram os primeiros ocupantes do Brasil.
Foi também após 1988 que a legislação nacional passou a considerar a necessidade de um território indígena ter tamanho suficiente para garantir os elementos necessários à reprodução não só física de um povo, mas também cultural. Ainda foi estipulado que essa demarcação deve ser da área tradicionalmente ocupada pela etnia em questão.
São vários os exemplos de reservas indígenas de territórios tradicionalmente ocupados, podendo ser citado o caso da reserva Apucarana, em Londrina, ocupada pela etnia Kaingang. Antes da Constituição de 1988 eram demarcadas áreas muito pequenas e/ou em localidades distintas da área tradicional de ocupação do grupo.
Os reflexos de tal política permanecem na atualidade, principalmente nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul, e também no Mato Grosso do Sul, onde o que se vê são situações de confinamento territorial e restrições diversas aos indígenas. São justamente nessas regiões que estão localizados conflitos por terras entre indígenas e não indígenas.
Portanto, vemos que a partir de 1988 foi estabelecida uma nova relação entre governo, sociedade e povos originários, pautada no respeito e reconhecimento jurídico do direito à diferença.
Tal direito, segundo o professor da USP Eduardo Bittar, representa o objetivo do respeito das singularidades dentro de sociedades modernas que tendem a produzir homogeneização e padronização. Nesse contexto, a demarcação das terras indígenas figura como uma obrigação do Estado brasileiro imposta pela Constituição Federal.
Além desse documento, destaca-se o Decreto 5051/04 e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho no Brasil (OIT), que garantem aos povos indígenas a posse exclusiva de seus territórios e o respeito às suas organizações sociais, costumes, línguas, crenças e tradições, consolidando o Estado Democrático e Pluriétnico de Direito.
AS FORMAS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE TERRITÓRIOS INDÍGENAS
Existem quatro formas de garantir o direito dos indígenas ao território. São elas:
- Terras Indígenas Tradicionalmente Ocupadas: tratadas no artigo 231 da Constituição, são as terras indígenas de ocupação tradicional, de direito originário dos povos indígenas, cujo processo de demarcação é feito com base no Decreto n.º 1775/96.
- Reservas Indígenas: são terras doadas por terceiros, adquiridas e/ou desapropriadas pela União e que se destinam à posse permanente dos povos indígenas. Também pertencem ao patrimônio da União e não correspondem às terras de ocupação tradicional da etnia em questão, tal como ocorre na forma anterior.
- Terras Dominiais: são adquiridas por compra ou por doação e são de propriedade das comunidades indígenas. Esse é o único caso em que as terras não são apenas de usufruto dos indígenas e propriedade da União.
- Interditadas: são áreas interditadas para proteção dos povos indígenas em isolamento voluntário, com controle de entrada e circulação de terceiros. A interdição da área pode ser realizada, ou não, juntamente com o processo de demarcação disciplinado pelo Decreto n.º 1775/96.
Mas o que são indígenas em isolamento voluntário?
São também conhecidos como índios isolados, que não mantêm contato com a sociedade não indígena e nem com outros indígenas. Considera-se o isolamento como voluntário pois é escolha desses grupos não estabelecer contato com outras pessoas.
Essa opção é assegurada pela legislação e são proibidas quaisquer tentativas de contato com esses indígenas, que atualmente somam cerca de 80 grupos conhecidos no Brasil, sobretudo na região Amazônica.
COMO SÃO DEMARCADAS AS TERRAS INDÍGENAS?
É de competência da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) promover a demarcação das terras indígenas, protegê-las e fazer respeitar seus bens.
Cabe a essa autarquia coordenar e executar a política indigenista brasileira, as ações de regularização, monitoramento e fiscalização das terras indígenas Tais funções têm como bases principais o artigo 231 da Constituição de 1988 e o Estatuto do Índio (Lei 6.001/73).
A demarcação das terras indígenas é realizada por meio de um procedimento administrativo, pautado em requisitos legais e técnicos, seguindo as etapas explicadas adiante:
- Verificação da demanda territorial: é o início do processo. Verifica-se a demanda posta pelo povo indígena, o que é feito por um antropólogo. Cabe a esse profissional elaborar a Qualificação da Demanda indicando a área reivindicada, o contexto social, político e econômico.
- Estudos de identificação e delimitação: a FUNAI nomeia um Grupo Técnico (GT), que é coordenado por um antropólogo. Esse GT realiza as pesquisas e elabora o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena (RCID). Tal relatório é submetido à aprovação do Presidente da FUNAI. Após aprovado, um resumo do documento é publicado no Diário Oficial da União, no Diário Oficial do Estado onde se localiza a área e na Prefeitura Municipal.
- Contraditório Administrativo: essa etapa garante o direito dos estados, municípios e de qualquer interessado na área a ser demarcada de manifestar-se. Caso alguém tenha motivos para pedir uma indenização ou para indicar erros no relatório, tais razões devem ser apresentadas à FUNAI. O Ministro da Justiça é o responsável por analisar a questão esse julgamento.
- Delimitação do território: é hora da declaração dos limites da terra indígena e da determinação de sua demarcação, mediante uma portaria declaratória, feita pelo Ministro da Justiça.
- Demarcação física do território e aprovação: enquanto essa demarcação é feita pela FUNAI e consiste na fixação dos limites físicos da terra indígena, a aprovação é realizada por meio de um decreto.
- Levantamento dos habitantes: trata-se do levantamento das pessoas não indígenas que estejam na área que será demarcada. Se essas pessoas forem consideradas ocupantes de boa-fé, elas serão indenizadas e devem, obrigatoriamente, deixar o local. Se forem ocupações de má fé, por exemplo as grilagens, não terão direito à indenização. Isso fica a cargo da FUNAI, em conjunto com o INCRA.
- Aprovação da demarcação: é feita pela Presidência da República por meio decreto presidencial. Junto à ela vem a retirada de ocupantes não-índios, com o pagamento das indenizações, pela FUNAI. Além desse pagamento, é responsabilidade do INCRA realizar o reassentamento dos ocupantes não-índios que se enquadrem no perfil da reforma agrária.
- Registro das terras indígenas: é feito pela FUNAI junto à Secretaria de Patrimônio da União (SPU), em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação.
- Interdição da área: realizada pela FUNAI apenas em casos de ocorrência de indígenas isolados. Vamos conhecer melhor estes casos adiante.
QUANTAS SÃO AS TERRAS INDÍGENAS?
Segundo a FUNAI, atualmente existem 732 territórios indígenas em diversas fases:
- 43 terras indígenas demarcadas;
- 72 terras declaradas;
- 15 terras indígenas homologadas;
- 435 terras regularizadas;
- 111 terras indígenas em estudo;
- 6 portarias de interdição;
- 34 reservas indígenas regularizadas; e
- 16 reservas indígenas encaminhadas.
Mas algumas Instituições e Organizações Não Governamentais indicam outros números, porque consideram as “terras sem índios”, ou seja, aquelas que nem começaram o processo de demarcação pela FUNAI.
Por exemplo, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) indica a existência de 1296 terras indígenas no Brasil, sendo que 63,3% delas não tiveram quaisquer providências administrativas tomadas pelos órgãos do Estado, permanecendo casos de ‘índios sem terra’.
Portanto, vimos que o processo de demarcação é um meio administrativo para limitar o território tradicionalmente ocupado por uma ou mais etnias aborígenes.
Com o dever de demarcar as terras indígenas, o Estado Brasileiro busca resgatar uma dívida histórica com os primeiros habitantes da nação, propiciando condições fundamentais para a sobrevivência física e cultural desses povos e preservando a diversidade cultural brasileira.
Tudo isso em cumprimento ao que é determinado pelo artigo 231 da Constituição Federal.
Este artigo foi publicado originalmente no Portal Politize.