Há 13 anos consecutivos, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Em 2021, 140 pessoas transgênero foram assassinadas em território nacional, segundo o Dossiê Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras, feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
Segundo o levantamento, os estados com o maior número de mortes são São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro, respectivamente. Sozinho, o país acumula 38,2% de todas as mortes de pessoas trans do mundo.
Mas, afinal, o que é uma pessoa transgênero? Por que a identidade de gênero de pessoas trans causa tanta comoção por parte da sociedade, gerando tantos atos de violência? E como a lei atua para proteger os direitos dessa população?
O que é transgênero?
Transgênero pode ser definido como uma expressão guarda-chuva que abarca pessoas que assumem um gênero diferente do sexo biológico. Na transgeneridade há indivíduos que são transexuais, ou seja, que não se identificam com o sexo biológico com o qual nasceram e para isso podem trocar de nome, de gênero, fazer uso de hormônios e até mesmo fazer uma cirurgia para redesignação de sexo. O oposto de transgênero é o cisgênero, que é a pessoa que se identifica com o sexo biológico.
Exemplos:
- uma mulher trans é uma pessoa que nasceu com genitália masculina e se identifica com o gênero feminino.
- um homem trans é uma pessoa que nasceu com genitália feminina e se identifica com o gênero masculino.
Gênero: é determinado por construções sociais moldadas ao longo dos anos sobre o que se espera do comportamento de uma pessoa a partir do seu sexo biológico.
Identidade de gênero: é o gênero com o qual uma pessoa se identifica. Essa identidade pode ou não estar em consonância com o sexo biológico, os órgãos genitais. Está relacionada a como a pessoa se vê e como se percebe no mundo.
Orientação sexual: refere-se à sexualidade de uma pessoa, ou seja, por qual sexo alguém se sente atraído.
Confira aqui o nosso dicionário LGBTQ+ para entender outros termos usados pelo movimento.
O que é transfobia?
Transfobia é todo e qualquer tipo de preconceito, aversão, rejeição, ódio, medo ou discriminação de pessoas transexuais. Essas atitudes podem se manifestar, de forma explícita ou velada, por meio de violências físicas, psicológicas ou morais.
Os atos discriminatórios que de alguma forma atacam a manifestação individual dessas pessoas costumam partir de uma visão distorcida – e errônea – de que a transexualidade não é algo que faça parte da condição humana. A transexualidade deixou de ser considerada um transtorno mental pela Organização Mundial de Saúde em uma assembleia mundial em Genebra no ano de 2019. Na prática, o que se fez foi desvincular a experiência transexual de uma patologização. Isso significa que uma pessoa que se identifique como trans tem o direito de ser acolhida e receber cuidados de equipes multidisciplinares durante um eventual processo de transição de gênero. Por muito tempo, uma pessoa que buscasse uma cirurgia de transição de gênero era considerada portadora de um transtorno mental.
Vale ressaltar que a agressão a pessoas trans é enquadrada em crime de ódio. Isso porque, diferentemente de outros crimes, neste caso a identidade de gênero é um fator determinante para a agressão. O objetivo, portanto, é atacar a minoria social, não apenas a pessoa em si.
Embora os casos de violência física e assassinato sejam frequentes no Brasil, essas não são as únicas formas de agressão.
A transfobia pode estar em atitudes que parecem inofensivas, como não validar a identidade de gênero de uma pessoa, ignorando seu nome social ou trocando pronomes, por exemplo, ou até por meio de perguntas invasivas, como “mas você não é mulher de verdade?” ou “você fez a cirurgia de mudança de sexo?”.
A falta de representatividade nos mais diversos meios também acaba gerando uma espécie de exclusão e até silenciamento desse grupo, o que também desencadeia um sentimento de marginalização e de exclusão.
A transfobia na educação
Segundo levantamento realizado pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), estudantes transexuais representam 0,1% do total dos alunos de universidades federais. No ensino básico, os números também são alarmantes: 72% da comunidade não-cis sequer possui o Ensino Médio completo e 56% concluiu o Ensino Fundamental.
Pela hostilidade que o ambiente escolar pode promover, com casos de bullying, por exemplo, e, muitas vezes, uma certa negligência por parte das instituições, ocorre uma evasão sistemática das pessoas trans do mundo estudantil.
O Plano Nacional da Educação aprovado em 2014 e válido até 2024, que tem como objetivo determinar as diretrizes, metas e estratégias das políticas educacionais brasileiras, não menciona algumas noções fundamentais que impactam em uma maior consciência sobre as diferenças, como “identidade de gênero”, “orientação sexual”.
Nesse contexto, já existem alguns cursinhos pré-vestibulares específicos direcionados à comunidade, como o Transformação, em São Paulo; o Prepara Trans, em Goiás; o Educatrans, em Sergipe; e o Prepara Nem, no Rio de Janeiro.
No mercado de trabalho
A exclusão escolar acaba impactando diretamente na qualificação profissional dessas pessoas e dificultando a inclusão no mercado de trabalho.
Estima-se que 90% das mulheres trans e travestis no Brasil têm a prostituição como a única fonte de renda para a sua subsistência, segundo um estudo da Antra. Em relação ao restante, apenas 4% possuem emprego formal e 6% possuem emprego informal.
“A principal pauta do movimento trans eu tenho certeza que é o mercado de trabalho. O mercado de trabalho é muito restrito. A única profissão que elas têm são profissões como cabeleireira, esteticista e a prostituição. Mas muitas delas querem ter outros espaços também”, disse Milena Passos, ativista há 25 anos e coordenadora do Grupo Gay da Bahia (GGB), em entrevista ao G1. “[Pessoas trans e travestis] são expulsas de casa, a escola não aceita, o mercado de trabalho não se prepara e sobra, praticamente, a prostituição.”
Na mesma entrevista, o ativista da causa trans Caio Guimarães explicou que algumas empresas empregam pessoas trans apenas para serem bem vistas no âmbito social mas, na prática, esses trabalhadores não recebem tratamento igual aos demais.
“Na verdade, é só por uma questão de status e dizer que você está contratando [transsexuais e travestis] mas, quando a pessoa passa pela agressão e você vai falar, as pessoas não sabem nem como agir ou não fazem nada. Tudo isso é muito difícil porque realmente é desassistido tanto no âmbito da instituição quanto na delegacia”, afirmou Caio.
Outros impactos
A educação e o mercado de trabalho são apenas alguns exemplos dos impactos da transfobia, mas o problema gera consequências para a vida dessas pessoas como um todo.
Apesar de não existirem dados oficiais sobre o tema, estima-se que os índices de suicídio de pessoas trans sejam de 31% a 50% e também é a população mais suscetível à depressão, ansiedade e outras patologias complexas, segundo avaliação de Vinícius Alexandre, coordenador do Grupo de Ação e Pesquisa em Diversidade Sexual e de Gênero da USP (Universidade de São Paulo).
A Antra também aponta que as pessoas transgênero são expulsas de casa pelos pais no Brasil, em média, aos 13 anos e que a expectativa de vida das pessoas do grupo é de 35 anos.
Transfobia e a legislação
Na Constituição de 1988, não há uma referência específica aos direitos da comunidade LGBTQIA+. Mas muitos dos princípios fundamentais da legislação brasileira protegem esse grupo, como o artigo 5º, que define que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” e que a lei punirá qualquer tipo de discriminação.
Em 2018, também foi permitida a inclusão ou exclusão de nome social da pessoa transgênero no Cadastro de Pessoa Física (CPF), assim como a retificação do registro civil sem a necessidade de cirurgia de redesignação sexual.
Além disso, em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que atos de homofobia e transfobia podem ser equiparados, perante a lei, ao crime de racismo e, dessa forma, devem ser punidos seguindo as mesmas diretrizes – até que o Congresso Nacional defina uma lei específica para a questão LGBTQIA+.
Mas mesmo com essas leis em vigor, os direitos dessa comunidade ainda são desrespeitados. A transfobia, a patologização de identidades de gênero e as ações de exclusão contra o grupo, impedem o exercício pleno da cidadania de pessoas trans e a livre manifestação de suas individualidades, gerando estatísticas preocupantes e uma discriminação violenta e sistemática desse grupo.
Para se aprofundar no tema
- Bixa travesti, documentário disponível no Globoplay;
- Homo e transfobia: por que a lei não pega; episódio do podcast O Assunto;
- Trans: Histórias reais que ajudam a entender a vida das pessoas transexuais desde a infância; livro reportagem de Renata Ceribelli e Bruno Della Latta.